“A meninice é uma quantidade
de coisas, sempre se movendo; …”
(Essa foi a fala de Guimarães Rosa, Buriti)
… Foi nos tempos em que mundo estava cheio de gente muito herege, e mando malvado vinha parece que de anhanga de má sina. Foi sim, num dia de só trabalho roceiro qualquer, como todos outros dias de ano e vida… um pai leva filho de seu, muito menino, à roça; mostra-lhe tarefa, de braço direito esticado, aponta volteando tudo, dizendo este aqui de chão nas ervas daninhas, em meio às plantas tudo, tudo, é para seu dia de hoje, que se faça carpa até sol se pôr, pois volto a minhas obrigações, em outros quefazeres; e nem se falhe, hein!, de ansim que se precise para hoje, de tanto carecido está roça em mato… E se foi, deixado menino carpindo o dia de lindo que estava quarando tudo… Logo viu um tatuzinho no chão, e fez ele, brincando de curumim, estória de agora eu era, bem quando sabiá-poranga vivente veio cantando bonito, longo floreado, e triste… sua inclinação tenra de agora eu era voou com o canto do pássaro à sombra da árvore cobriu mundo inteiro para ele, e ele teatreou, agora eu era, de um galhinho caído, mais umas frutinhas, outra porção de passarinhos, vaquinhas, cabritinhos que passeavam enredo na sua fazenda de agora eu era fazendeiro querendo todos nunca parar: de chilrear, de mugir, de berrar mamãe que queria mamar naquele sol imenso, bom de só adular sem fim… mas era sol também de dia em todo passante, atarefado, dobrando na fúria de acabar com aquele dia… (Ara, por que que sol passa sempre assim, nos dias, de dobrar, dobrar e dobrar?…) Meninozinho dormiu; tanto brincava, entrou em sonho de continuou brincando naquelas nuvens de fazenda que tinha inventado…
“Bicho papão, de cima do telhado, pegue esse menino…” … A roça acordou ouvindo, ouviu passos, passos em seu manto silêncio, afastado pra lá, pra cá… É o pai, mesmo, chegando!… e em tanto erguia-se, comprido, naquelas ervas, que ouviam… e se retraíram: “Ah!… de seu excomungado, tá dormindo no eito, em antes de ser homem neste dia bão, bão de sol a sol!…” E puxou cinta de grossa raiva… e puxou cinta de grosso purgar… Um susto saltou o menino preso em peias serpentes de garras horrendas; de levanta-o leve, sem pena, e arremessa-o ao chão dos tatuzinhos, que ouviam gritos-gemidos de dor; dor que nem nos cantos dos passarinhos, enchendo aquela roça, “Vivi!… vivi!…”, entrecortados pelos urros-fera de seu pai, ansim-ansim: “Ocê perdeu um dia bão!… ocê perdeu um dia bão!…”, e batia de cinta em alta tunda, de esfolar corpinho, aos urros murros, que todos animais e matinhos de árvores de sua fazenda bem espiavam terror espalhado pelo céu da criança de menino: céu dos passarinhos; céu dos cabritinhos; céu das vaquinhas; céu das nuvens… causa que os soluços iam passando montados nos fios de vento levados espalhados chão afora, pela fazenda inventada do menino, já esmorecendo, já esmorecido aos pés de um pai aterrorizante: “Ocê perdeu um dia bããoo!… ocê perdeu um dia bããoo!… … …”
No que o menino fechou seus olhinhos de alma ainda em natura, fechou de fechando, fechando de vagarinho; de nem um grilinho ouvir soluço algum; de nem sentir mais nenhuma dor; nem urros; nem nada mesmo… corpo mole, mole, falecido no chão, ao pé de um pai bufante, malvado qual um ser pobre de si…
… Mas foi sim, num repente; sem ninguém perceber, o menino, do chão estando, parecendo estória finita, levanta-se-levanta-se em voo!… agora eu era zangado, com seus braços de asas, pula pluma nos galhos de árvores de eterna sombra a sombra, pia, e pia… forte, gorjeante, bem ansim: “Eu perdi um dia bãããoo?… Eu perdi um dia bãããoo?… … E pai, temor semblante, que ali estava, foge em fúria veneno, saindo na ânsia da morte, por entre árvores e roças de sombra a sombras íngremes daquelas barrocas: Grotões de Cantare, por entre árvores e roças de muita visagem… e os passarinhos outros, que bem observavam aprendendo o canto do menino, juntam mutirão fantástico na força de canto em coro e vozes, por ora, aterrorizantes, enchendo aquele chão de roças de antigamente… bem ansim, no rigor: “Eu perdi um dia bãããoo!?… Eu perdi um dia bãããoo!?…”, encerrando quadrantes em pânico terrível… E aonde isse que sumisse de si o pai ruim, o menino, agora renascido ave picharro, cantava terror gorjeante: “Eu perdi um dia bãããoo!!?…”
… e canta até hoje na tarefa de se ressuscitar, a cada canto, aos pais hereges e pobres de si, deste nosso mundo:
“Eu perdi um dia bãããoo?… Eu perdi um dia bããão?…”
(de Cantare Estórias)
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